terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Resistência quilombola suspende obra da Transnordestina no Piauí

Comunidade de Contente denunciou irregularidades e a Justiça Federal determinou suspensão dos serviços entre Eliseu Martins (PI) e Trindade (PE).


Obra da Transnordestina se encontra suspensa há um mês e meio por causa de denúncias de irregularidades na construção da ferrovia na área quilombola, no Piauí (Foto: Wagner Sarmento/TV Globo)

A história da comunidade quilombola de Contente, em Paulistana, no Piauí, remonta ao fim da escravidão, no século 19. Um negro alforriado não sabia o que fazer com a liberdade recém-conquistada, até que, pelos serviços prestados, o antigo dono mandou ele escolher um lugar para viver. A alegria do escravo foi tanta que deu nome ao povoado onde hoje moram 47 famílias. Pequena no tamanho, a comunidade que respira resistência tem batido de frente com os gigantes: por causa das denúncias de irregularidades na construção da ferrovia na área quilombola, a obra da Transnordestina se encontra suspensa há um mês e meio após ordem da Justiça Federal.

(O G1 publica uma série de cinco reportagens sobre as obras de ferrovia Transnordestina, que corta os estados de Pernambuco, Ceará e Piauí. A primeira mostra que, inciadas em 2006, obras ainda não foram concluídas e seguem sem prazo. A segunda traz o retrato das famílias desapropriadas. Já a terceira mostra os prejuízos causados a fábricas de gesso em Pernambuco devido à demora da instalação da ferrovia).

A decisão, proferida pelo juiz federal Pablo Enrique Carneiro Baldivieso, da Subseção Judiciária de São Raimundo Nonato, suspendeu a licença de instalação no trecho da obra entre Eliseu Martins (PI) e Trindade (PE). A ação civil pública foi movida pelo Ministério Público Federal contra a Transnordestina Logística e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), após uma representação formal da Associação de Moradores de Contente.

A voz da resistência na comunidade quilombola atende pelo nome de Jucélia Xavier, presidente da associação. Segundo ela, os danos foram muitos. Casas sofreram rachaduras, animais precisaram ser deslocados, passagens foram fechadas, cisternas quebraram ou foram entupidas. Episódios de preconceito também foram denunciados.

“Nosso patrimônio foi acabado. Ninguém avisava nada. Quando a gente menos esperava, invadiaram nossa terra. Falavam que, se a gente não quisesse levar poeira, que a gente mudasse de país. Ainda hoje, se chega algum estranho, dá um arrepio na gente”, afirma. “Diziam que a gente, de branco, só tinha os dentes. Sofremos discriminação. Não sei ler, mas minha cabeça é um computador. Lembro de tudo. Acabou nosso sossego”, acrescenta.

A suspensão da obra se deu porque a Fundação Cultural Palmares e a Transnordestina Logística firmaram um Termo de Compromisso Ambiental, à época do início da construção da ferrovia, para que a concessionária realizasse contrapartidas para minimizar os impactos ambientais, sociais e culturais.

“Ocorre que, no prazo de 18 meses fixado no ajuste, a TLSA não executou as obrigações assumidas”, informa a nota da Justiça Federal do Piauí. Em caso de descumprimento da decisão judicial, a multa diária é de R$ 10 mil.

No canteiro de obras de Simplício Mendes, onde se concentram os trabalhos no Piauí, os cerca de 400 funcionários que saíram para o recesso de final de ano em 16 de dezembro ainda não retornaram a seus postos. A reportagem esteve no local e atestou a paralisação dos serviços.

São 107 máquinas paradas, entre tratores e caminhões, alguns sem pneus e com sinais de deterioração. Enquanto isso, a terraplenagem na região sofre com a erosão. O túnel sob a rodovia PI-143 ainda não foi feito. Os trilhos, no Piauí, só foram implantados até a cidade de Paulistana. De lá até Eliseu Martins, uma faixa de terra de mais de 300 quilômetros ainda não recebeu o progresso prometido.

Efeitos à apicultura

A Transnodestina também fez cair quase pela metade a produção de mel orgânico em Contente e na comunidade quilombola vizinha de Barro Vermelho. A apicultura é a principal atividade econômica nos povoados que, juntos, somam 350 famílias. A ferrovia chegou e, até então, só trouxe prejuízos. As explosões para abertura do caminho por onde passam os trilhos afastaram as abelhas e destruíram criadouros.

De acordo com o presidente da Associação dos Apicultores de Barro Vermelho, José Eusébio de Carvalho, antes a produção de mel era de 28 toneladas por safra. Esse número caiu para 15 toneladas no último ano. E ligou o alerta para um povo que a história acostumou a viver com quase nada, mas que sonhava com dias melhores graças à apicultura. “O impacto ambiental não tem tamanho. Nossa principal fonte de renda é o mel, tudo que a gente tem veio do mel. De repente, as abelhas foram embora por causa da poeira e do barulho das explosões”, lamenta.



Presidente da Associação dos Apicultores de Barro Vermelho, José Eusébio de Carvalho afirma que, depois da Transnordestina, produção de mel caiu de 28 toneladas 15 toneladas por safra no último ano.  (Foto: Wagner Sarmento/TV Globo)

A associação conta com 53 produtores cadastrados. Alguns chegaram a perder 70% dos enxames. A reportagem esteve em um ponto de criação às margens da Transnordestina e encontrou viveiros vazios ou com abelhas mortas.

Além disso, como o mel produzido por lá é orgânico, a empresa certificadora informou aos produtores que os apiários precisam ficar a pelo menos quatro quilômetros dos trilhos para que sejam considerados livres de toxidade. O deslocamento forçado contribuiu para o baque na produção. O mel dos quilombolas é exportado para países como Alemanha, Bélgica, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Arábia Saudita.

Casa do Mel, onde o produto é colhido e processo, também precisou ser desativada para a passagem dos trilhos
(Foto: Wagner Sarmento/TV Globo)

A Casa do Mel, onde o produto é colhido e processo, também precisou ser desativada para a passagem dos trilhos. Como contrapartida, a Transnordestina Logística ergueu uma nova sede para os apicultores, mas deixou a obra inacabada há mais de um ano. O imóvel não tem eletricidade e, por isso, não pode ser utilizado para produção. Um poste deixado no chão confirma o abandono. As instalações vazias revoltam. “Falaram que a ferrovia traria progresso, mas a gente só viu prejuízo”, dispara José Eusébio.



Por Wagner Sarmento, TV Globo
21/02/2017 06h18



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